quarta-feira, 3 de abril de 2013

A razão crítica de Cervantes através da loucura de Dom Quixote

Dom Quixote", o primeiro grande romance da literatura universal, está completando 400 anos. Dividido em duas partes, teve a primeira publicada em 1605, quando Cervantes andava pelos 57 anos. Obteve sucesso inesperado. Traduzida para o inglês em 1612, e para o francês em 1614, a obra atraía aos portos das Américas centenas de leitores ávidos por revistar as embarcações chegadas da Espanha à procura de um volume. Em 1615 Cervantes publicaria a segunda parte das aventuras do cavaleiro da Mancha. No ano seguinte, a 23 de abril, ele haveria de se encontrar com Shakespeare do outro lado da vida, pois os dois faleceram no mesmo dia.

 

Toda obra de arte vale por sua beleza e não necessita de explicaçoes. Ela é polissêmica e cada pessoa a aprecia a partir de sua sensibilidade. Pois todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto. A sensibilidade, porém, não é uma qualidade inata. Pode e deve ser apurada, acrisolada, refinada, de modo que se extraia da obra de arte o máximo proveito. O que para alguém são apenas dois pedaços de madeira cruzados ao acaso, para muitos é a cruz carregada de significado, símbolo de uma fé religiosa fecundada na história do Ocidente pelo sangue dos mártires.

 

Sabemos também que todo texto é melhor compreendido quando situado dentro de seu contexto. O impacto que causa a estética da arquitetura de "Dom Quixote" provoca a curiosidade da razão, suscitando interrogações que nos impelem ao irresistível e difícil trabalho de arqueologia do texto, como quem contempla a imponência das pirâmides do Egito e se indaga como foi possível obra tão monumental quando ainda a roda não havia sido inventada.

 

Em "Meditaciones sobre el Quijote", Ortega y Gasset frisa que "no existe libro alguno cuyo poder de alusiones simbólicas al sentido universal de la vida sea tan grande y, sin embargo, no existe libro alguno en que hallemos menos anticipaciones, menos indicios para su propia interpretación".

 

O que sabemos, porque nos é dito pelo autor no próprio texto do romance, é que "Dom Quixote" é uma paródia dos livros de cavalaria. O autor pretendeu, segundo as suas próprias palavras, "destruir a autoridade descabida que exercem no mundo e entre o povo os livros de cavalaria." No último capítulo da obra, quando Dom Quixote já se encontra no leito de morte e recupera a lucidez, voltando a ser o bom Alonso Quijano, ele desabafa aos amigos que o cercam: "Tenho o juízo já livre e claro, sem as sombras caliginosas da ignorância com que o ofuscou a minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros de cavalaria. Já conheço os seus disparates e os seus embelecos e só me pesa ter chegado tão tarde este desengano, que não me desse tempo para me emendar, lendo outros que fossem luz da alma". E mais adiante: "Já sou inimigo de Amadis de Gaula e da infinita caterva de sua linhagem; já me são odiosas todas as histórias profanas de cavalaria andante; já conheço minha necedade e o perigo em que me pôs o tê-las lido; já por misericórdia de Deus, e bem escarmentado, as abomino".

 

Um romance não é obra apenas da razão. Resulta sobretudo do inconsciente, lá onde a intuição garimpa a matéria-prima que surpreende o próprio autor. Portanto, ao motivo explícito revelado por Cervantes – a crítica radical à literatura de cavalaria – há que se perguntar que outras motivações o impeliram a dedicar tantos anos a uma obra tão bem estruturada. Não importa que essas motivações não tenham sido apontadas pelo autor e, quem sabe, nem eram nele conscientes. Assim como o funcionamento de um relógio pode ser melhor compreendido ao desmontá-lo em suas diferentes peças, também o texto, como as pirâmides do Egito, contém galerias e redutos plenos de tesouros.

 

A crítica social

 

A crítica social de "Dom Quixote" é melhor percebida ao recordar que o autor foi súdito da monarquia absolutista de Felipe II, apoiada pela Contra-reforma tridentina, e redigiu sua novela sob o reinado decadente de Felipe III. Felipe II arruinara a Espanha com a sua megalomania expansionista, investindo na dilatação de um império que abarcava desde as Filipinas ao norte da Europa, a África e o Novo Mundo latino-americano, até mesmo o Brasil, onde os portugueses foram os primeiros a aportar. As exorbitantes despesas militares, a obsessão por espalhar pelos mares sua Armada Invencível, os gastos com a exploração e a importação de ouro e prata das Américas, foram fatores que mergulharam o país de Cervantes na espiral inflacionária, agravando a crise social. A Mancha, terra de Dom Quixote, é o retrato da decadência do reino, onde o desemprego multiplicava pelos povoados e caminhos pícaros, mendigos, vadios, charlatães, bandidos, enfim, toda uma classe de marginalizados e excluídos cujos farrapos destoavam dos elmos dos oficiais do rei e dos heróis dos romances de cavalaria.

 

Em 1898 a Espanha perdeu, com a independência de Cuba, suas últimas colônias. Então o "Quixote" passou a ser lido com novos olhos: Cervantes prefigurara ali a ruína da Espanha, desbancada de sua loucura imperialista – embora a herança conservadora da Contra-reforma tenha produzido, no século XX, a aterradora figura do generalíssimo Franco.

 

Tornar-se hoje mais fácil reler o "Quixote" destacando sua aguda crítica social. Em 1605 já não havia castelos na Mancha. Havia casebres, albergues e bodegas, entre os quais trafegariam o cavaleiro da triste figura e Sancho Pança, seu fiel escudeiro, opondo-se a todas as instituições de poder: o Estado, a polícia, a Igreja e as atividades econômicas.

 

Em 1925 Américo Castro publicou "El pensamiento de Cervantes", comprovando a influência de Erasmo de Rotterdã sobre Cervantes. López de Hoyos, professor do criador do Quixote, era erasmista convicto. Em um trecho do romance é citado o livro de devoção "Luz del alma", de frei Felipe de Meneses, também discípulo de Erasmo. Este erudito sacerdote flamengo dedicou-se a libertar a teologia do formalismo da escolástica decadente. Era um homem de mente aberta, tornara os textos bíblicos acessíveis aos leitores leigos, desmistificou o rigor acadêmico dos textos teológicos, tão misteriosos e herméticos aos olhos do vulgo frente aos dogmas que reforçavam.

 

Nutrido pelas fontes do pensamento humanista, como Platão, Aristóteles e Horácio, Cervantes relativizou tudo aquilo que o  poder, tanto político quanto eclesiástico, absolutizava. Iniciou sua narrativa por nos contar que Alonso Quijano enlouqueceu de tanto ler. E a partir daí construiu o contraponto entre ilusão e verdade, mesclando a realidade e o sonho, o cotidiano e o quimérico, o heróico e o cômico, sem ceder ao ceticismo dos escritores barrocos. "Dom Quixote" não é um romance picaresco, embora esteja repleto de pícaros. É uma sátira inconformista que arranca a máscara do império espanhol, mostrando que não há heróis nem cavaleiros, há sim maus escritores, soldados indisciplinados, inquisidores disfarçados, médicos incompetentes, bandidos, assaltantes, camponeses e pastores.

 

Otto Maria Carpeaux observou que, influenciado pelo humanismo tolerante e crítico de Erasmo, Cervantes fez uma criação crítica e uma crítica criadora. Seu personagem defende as vítimas das injustiças praticadas pelos poderosos e nos alerta para a facilidade com que os nossos olhos míopes encaram a realidade: vemos gigantes maldosos onde há apenas moinhos de vento; exército de inimigos onde pasta um rebanho de ovelhas; um grande troféu numa simples bacia de barbeiro.

 

"Amadis de Gaula" e outros romances de cavalaria glorificavam a mentalidade feudal e a empresa colonizadora da Armada espanhola. Cervantes ergueu a sua pena contra todos aqueles que insistiam na loucura de pretender encobrir a verdade histórica com a ficção cosmética. Na folha de rosto da 1ª. ediçao há o desenho de um escudo e, nele, o lema: "Post tenebris, spero lucem"- depois das trevas, espero luz. A luz do antidogmatismo, que derruba as verdades absolutas e as certezas consideradas irremovíveis. A luz que nos permite ver que, de fato, tudo é ambíguo, contraditório, dialético. Até mesmo o próprio Cervantes, que no fim da vida escreveu – pasmem! – um romance de cavalaria, "Persiles y Segismunda".

 

Bergamín (e não Chesterton, como muitos pensam), nos preveniu que "louco é aquele que perdeu tudo, menos a razao". E Michel Foucault, em "Les mots e les choses" frisa que Quixote é o louco senhor da razão, mas não com a sua loucura, e sim com o seu protesto. Hoje, o império são os EUA. E onde há apenas pequenas instalações industriais e bases petrolíferas ele enxerga armas de destruição em massa; onde há apenas famílias trabalhadoras, ele vê terroristas; onde há tão-somente homens e mulheres que praticam com devoção sua fé muçulmana, ele aponta fanáticos e fundamentalistas.

 

Onde andarão os Cervantes capazes de derrotar com a sua pena aqueles que nos miram com as suas armas?

(Texto de Frei Betto, daqui.)